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Os dias são contados. O Tempo passa. E se caminha cada vez mais como se fosse um diário de um eunuco.

segunda-feira

Miguel, Eu Te Amo

Eu já te falei que eu tenho raiva dessa mulher. Eu já te falei que eu tenho raiva dessa mulher? Benjamin abre o meu armário, meu filho e pega a caixa de sapato que tá ali encima. Isso. Trás aqui. Tá vendo essa foto aqui. Essa foto foi tirada em oitenta e oito. Acho que noventa. Como seu pai tá bonito. Foi na hípica. Pegou bem os cavalos correndo no fundo. E esse bigode, meu deus. Olhando assim parece que é dos anos setenta, né? Mas o Miguel era meio clássico. Não é velho. É clássico. Bonito. Coisa que não se vê mais. Mas bem... eu tô junto com seu pai e ela tá na foto também. Ela não aparece, mas ela tá aí. Ela tá em cada movimento calculado que eu achava que era frio na barriga, cada gesto que era para mim, ele ensaiava para depois encenar com ela, cada dinheiro de aposta ganho, era comida em casa e presente pra ela. A gente chegou cedo e fomos comer algo, depois pegamos os bilhetes e encontramos com o seu tio e seu padrinho. Eles foram tomar uma cerveja, uns minutos antes dessa foto ele ficou apreensivo, ele parece sério nela, eu sempre achei que era para parecer mais bonito. Você tira uma foto? Pedi pra moça que passava. uma moça bonita de cabelos loiros até a cintura. Ela tirou e saiu andando. Ele ainda ficou um pouco sério ali. O que foi? Apostei demais. Acho que vou perder. Foi o que ele disse. Idiota. Como eu fui idiota. ‘Apostei demais...’ Hah. Naquele dia ganhamos o triplo da aposta. Requer muita prática para saber que está morto. E você não morre de uma vez. Vai morrendo aos pouquinhos. É como escrever. Uma carta de amor. Algo assim. Quando você tem tempo você escreve, quando você não tem saco você bebe. Desculpa, meu filho, mas é a verdade. Eu queria que se fodesse toda a comida que ele colocava em casa. Eu quero os presentes dela. O que ele comprava? Será que ela se pavoneava toda com roupas minúsculas e depois ia dar pra ele ou eles andavam no carro do ano que seu pai trocava sempre desfilando com sua puta troféu no centro? Ela andava com nossos amigos. Será que fazia amor melhor que... Fazer amor. Olha a piada aí. Eu digo fazer amor. Você, por favor, não ri de mim. Trocava de carro todo ano para tirar o cheiro de puta, isso sim. ‘Eu sou um apaixonado por carros’. Burra. No fim de semana, queria todo mundo junto. Eu, você, seus sobrinhos. Gostava da casa cheia. Foi isso que nunca suspeitei. Nunca no fim de semana. Deveria ser na hora do almoço da firma. Nas noites, de trabalho e plantão. Plantão de emergência, como ele dizia. Quase toda semana. Cinco anos na firma, ele dizia que era de confiança e era difícil deixar outros cuidarem do sistema. Burra. Nunca no fim de semana, nem sequer uma vez. Adorava cozinhar pra mim, para vocês. Acordava cedo no domingo e inventava algo. Colocava Cartola pra tocar. Lembra o dia do Leitão. Ele chegou sexta de noite com um porco! Imagina! Mas Miguel onde a gente vai colocar isso? Não tem nem como fazer. ‘Deixa comigo.’ Quando seu pai falava ‘deixa comigo’, nossa... Bom. Miguel pegou toda a lenha guardada, foi no quintal, lembra? Sim. Você acordando gritando, tem um porco sendo assado! Eu ria. Todos os meninos correndo brincando de índio em volta do fogo. E o bichão no espeto. Cerveja demais. Todo mundo desceu. Do rio. De Petrópolis. Desce ou sobe? Não sei. Todo mundo veio. De repente, foi uma festa. Foi bom. Você falava, pode ser meu aniversário hoje? Seu pai te respondeu, Não. É o nosso. Aí caiu a ficha. Não tinha percebido. Não estava entendendo nada. Seu pai parou a música. Noel. Ajoelhou no meio de todo mundo. Marta, obrigado por casar comigo e ser a mulher da minha vida. Casa comigo, de novo? Era nosso aniversário e eu casei de novo na mesma semana. Ele tinha arranjado tudo. Tudo em pequenas coisas. Todo mundo sabia. Seu padrinho, bêbado, veio me cumprimentar. ‘Marta, não importa o que aconteça, o Miguel faz tudo pensando em você.’ Isso ficou na minha cabeça para sempre. Foi lindo. Me senti uma menina. Seu pai era bom pra mim. Uma semana depois, Campos do Jordão, na mesa de jantar, ele sorrindo, tomando vinho, seu bigode cheio de vinho, ele pousa a taça. Fica sério. Contrai o rosto e cai no chão. Se contorcendo com a mão no peito. Fulminante. Ali mesmo. Você ficou na casa do seu tio. E aí, teve o enterro.
Eu perto do caixão, pensando que tínhamos acabado de casar, começa um burburinho, eu olho pra trás e vejo seu tio. Apartando uma mulher alta. Nunca tinha visto. Me chamando. Eu sou a outra, Marta! Eu gelei. Naquele momento, eu percebi tudo, mas parece que fica tudo enevoado. Eu olhava pro seu pai, distinto, de terno.  ‘Marta, eu preciso falar com você! Me solta Rubens!’ Ela empurrou seu padrinho. Veio na minha direção. E me entregou um envelope. Ela chorava e nem olhou pro caixão. Óculos escuro, de luto, mas não olhou pro caixão. Se dei uma porrada nela? Benjamin, não sabia o que fazer. “Qu-quem é você?” “Eu sou ela. Desculpa. Não foi por mal. A gente fez um pacto.” E ela se foi. Tinha uma criança perto do Rubens. Ela puxou o menino. “Vem, Miguel.” E se foi pra dentro de um táxi. Todo mundo começou a brigar. Você veio e me abraçou. “Mãe, eu tô aqui.” E ficou lá abraçado á mim. Eu olhava pra ele sentada. E o tempo parou, não chorava, não soluçava, nada me doía, tudo era indiferença. Eu nunca mais chorei. Fiquei parada um bom tempo dentro de casa, sentia o cheiro de seu pai, da roupa, dormia do lado dele da cama. Mas não chorava. Fiquei com raiva durante muito tempo. Aí. Essa foto. Eu descobri o envelope faz uns meses. Eu sabia o que era. Minha mão tremia tanto. Quando abri, tinha um bilhete e uma foto. A foto desse dia na hípica. Atrás escrito, lê aí.

- Você também estava lá. Apertando o flash. M.

E o bilhete, é esse aqui, pega minha carteira.
Isso aqui tava escrito: POR EXÚ. A PADILHA ME DEU ELE.
Aí, eu sosseguei minha raiva dele. E virou dela. Mas não de ruim. De que ela queria e ele não deu. Ele deu pra mim. Queria ser, mas não foi. É boa essa sensação. Esse tempo todo. Era por mim. Aí eu consegui chorar. Consegui viver me amando. Sabe o que mais eu pen... Benjamin! Corre lá no portão! Seu padrinho chegou, pega a chave. Deixa guardar isso tudo. Vai.
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Miguel, Eu te amo.